quinta-feira, 30 de abril de 2009

Duas palavras em confronto

O processo de formação ideológica da consciência humana caracteriza-se, para o teórico Mikhail Bakhtin, por uma brusca divergência entre as categorias de duas espécies de palavra do outro: a palavra autoritária e a palavra persuasiva.

Examinemos, sob esta ótica, uma interessante obra portuguesa.

O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, como o próprio título indica, remete a outros e por demais conhecidos “evangelhos”.

Desde o princípio, estabelece-se, pois, um confronto entre a palavra autoritária do texto bíblico, tomada como verdade, palavra hierática, inspirada pelo próprio Deus, palavra doada aos homens, e a palavra persuasiva, moderna, flexível e ficcional do escritor português.

Em sua rigidez, a palavra dos outros evangelhos não pode ser discutida, sob pena de implodir a sua própria autoridade e a do mito que a sustenta. Ou a aceitamos em bloco, sem ressalvas, ou a renegamos da mesma forma. Os que a aceitam são crentes e a estes está reservado um reino doutro mundo. Os que a recusam são infiéis e destinados, pelo autoritarismo da outra palavra, já que ela se quer como “a verdade”, a um outro reino também, só que um pouco mais quente que o primeiro.

Já a palavra persuasiva de Saramago – metade dele e metade nossa, porque a leitura de ficção é sempre uma parceria, um pacto em que um finge acreditar no que lê e o outro finge crer no que escreve – permite a discussão, não impõe nenhum anátema, não nos condena ao fogo do inferno se nela não acreditarmos.

Pelo contrário, desde a abertura o autor nos faz ver – e crer – que estamos diante de uma representação da verdade e não diante da verdade. Na contramão dos outros evangelhos, esta não é uma palavra que dirá “Em verdade, em verdade vos digo”. Não, a palavra persuasiva apresentar-se-á sempre como uma “outra hipótese possível” e dirá que “tudo são coisas da terra, que vão ficar na terra, e (que) delas se faz a única história possível”.

O sol que se encontra no ângulo superior esquerdo do ícone, e que o narrador contempla e que por seu olhar contemplamos nós também, é uma metáfora do poder da palavra persuasiva. Este sol, com sua luz homogênea e crua, tentará iluminar obscuras regiões do antigo mito.

Depois de avisados de que estamos diante de uma pintura e que, portanto, tudo não passa de um exercício de imaginação, somos convidados a esquecer a representação, a entrar no quadro e a vivê-lo mimeticamente.

Repentinamente, sabemos que “a noite ainda tem muito para durar”, ou seja, penetramos num outro universo, atravessamos a tela, já podemos ver a luz de uma pequena lamparina combatendo as compactas massas de trevas ao seu redor. Assim, através do processo de leitura, passamos a vivenciar a verdade de José Saramago.

O novo evangelho, apócrifo, persuasivo, de moderno olhar e pós-moderna audácia, irá descrever o que os outros evangelhos não ousaram: a relação amorosa entre Maria e José, e resultou na concepção de Jesus, as marcas indeléveis deixadas no espírito do menino pela crucificação do pai, o complexo de culpa que perseguirá o adolescente Jesus, provocado pela descoberta da falta de caráter de José, a cama e o pão compartilhados com Madalena num dia-a-dia mediocremente humano, a recusa de Jesus em seguir o seu destino etc.

De todas as releituras que José Saramago propõe, a primeira será sem dúvida a mais radical, pois o dogma da divina concepção de Jesus Cristo é a base ideológica sobre a qual repousa toda a doutrina, de onde emana toda a autoridade do homem-Deus. Sem ela, tudo se pode dizer do Nazareno: que foi um poeta, um líder carismático, um revolucionário ingênuo, um lunático. Menos que foi Deus. E ter sido Deus é a pedra fundamental do edifício cristão.

No entanto, a força do mito se reinstaura. Saramago não quer fugir ao encanto da ambigüidade e traz à cena um estranho vento, um mendigo suspeito e de artes cabalísticas, que se anuncia como anjo.

(Lembremos que nos evangelhos bíblicos não há ambigüidade: um anjo anuncia à Maria que ela conceberá por graça do Espírito Santo. Não há hesitação naqueles narradores).

No texto de José Saramago, tudo pode não passar de coincidência, de um delírio de Maria, mas a dúvida permanece, tanto na consciência dela quanto na do leitor. Dúvida que será reforçada mais adiante, com uma questão lógica: de que forma Deus poderia participar da concepção de Jesus Cristo se não através de algo como um simples vento, que – como diz a Bíblia – sopra para onde quer?

Desde a abertura, instaura-se no romance de José Saramago uma tensão dialética entre a palavra autoritária e a palavra persuasiva, tensão que se manterá até o final, quando o sangue do crucificado goteja na tigela encantada, posta ali pelo próprio diabo.

O percurso da narrativa será um constante diálogo com os outros evangelhos, especialmente o de Marcos. O narrador de O Evangelho segundo Jesus Cristo supõe, no mínimo, que seu leitor conheça a outra história. Sua palavra é persuasiva porque não impõe essa nova versão, apenas a sugere e também porque “carece de autoridade”, já que vem de um escritor confessadamente ateu, contemporâneo e comunista. Também porque a sua palavra não vem aureolada com a pátina do tempo, nem foi alimentada com sangue e dor, não sofreu perseguições, não se mitificou (ainda).

Tomada em confronto com a outra versão do que aconteceu nas áridas terras da Galiléia há quase dois mil anos, é uma palavra não autoritária, ideologicamente aberta, plural. Porém, se confrontada com a realidade factual, concreta, humana, se é que temos consciência de que os deuses não andam a fornicar com nossas mulheres, e nem somos culpados por um pecado cometido por um mitológico primeiro casal, essa versão moderna do mito cristão acaba por ser tão ideologicamente autoritária quanto a antiga.

Porque afinal, no novo texto que descreve a vida do Nazareno, ainda que amasiado com Maria Madalena e amigo do próprio diabo, Jesus Cristo não deixa de ser filho de Deus e salvador dos homens pecadores.

A tensão no interior da própria palavra – e no interior da consciência do narrador – cristalizou-se mais uma vez, reafirmou o mito, engrandeceu-o até, porque, além de torná-lo mais verossímil, despiu-o de aspectos ideológicos contraditórios e inaceitáveis para uma época que necessita explicar o mundo de forma mais lógica e coerente.

Sim, mas podemos – e devemos – tomar o texto como simples literatura, divertida paródia. (O que, no limite, os outros evangelhos também são).

E contra o argumento de que aqueles foram inspirados por Deus, podemos retrucar que o de José Saramago também foi. Se Deus é Phytourgos, como o queria Platão, aquele que faz o que é vir a ser, Ele já sabia que Saramago seria Seu crítico contumaz. E, mesmo assim, permitiu-lhe a inspiração, esse estranho vento que sopra para dentro, e deixou que o escritor se confundisse ao atravessar uma rua e lesse, como que exposto na banca de jornais, um livro com o título de O evangelho segundo Jesus Cristo. O escritor português declara que foi assim que teve a idéia para escrever a obra.

O que nos leva ao paradoxo de pensar que democrático, mesmo, é Ele! (As maiúsculas, aqui, em ele e em seu são platônicas, alegóricas, e não erro de composição).

2 comentários:

  1. Maravilha de texto, Kiefer!
    Aliás, o blog está mesmo um arraso...parabéns!
    beijo
    Monique

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  2. Repito a Monique: maravilha de texto, Charles! Se eu fosse o Saramago, ficaria emocionada. Dá até vontade de colar esse link aqui lá no blog dele, para ele saborear o elogio.
    Leila

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