quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Glaciares (conto)

Já não conseguia mover os braços, as pernas e o pescoço sem que sentisse dores intensas, que se irradiavam dos nervos e tendões ao cérebro, onde explodiam em filetes cortantes, como que de lâminas, e que depois se espalhavam com ardência de fogo pelos tecidos e articulações. Morfina aliviaria, só que era preciso ir ao banheiro, aplicar a injeção em si mesmo, e não conseguia mais se levantar.

Agora, ouvia estalidos secos, de ossos se partindo, prestes a implodirem. Ou eram ilusões auditivas, memórias de uma distante viagem aos glaciares da Patagônia Austral?

Mantos de gelo desciam pelas encostas, ruidosos, buscavam o oceano por achar.

Ilhava-se, mas ainda foi capaz de ouvir a mulher dizer à vizinha, antes de afundar no mar obscuro:

– Esse aí não serve pra mais nada, não sai da cama, o vagabundo.

Um comentário:

  1. Gostei do conto. Gosto das histórias que mostram a inexorabilidade da morte, essa vilã que apanha o homem no meio dos seus prosaicos afazeres, de suas prosaicas rotinas, sem aviso... Escrevi um conto chamado A sua imprevisível chegada, que mostra, numa história cotidiana bem prosaica, justamente esta banal realidade: você será pego de surpresa, amigo. E ninguém estará nem ai com isso.

    Terminei esses dias de ler o Leite Derramado, do Chico. Gostei, apesar dos alfinetes que a crítica dedicou à obra. Não sei se você o leu, mas, de fato, o velho convalescente em seu monólogo tem semelhanças com o Braz Cubas; ainda assim, o livro tem brilho próprio. Impactante acompanhar os relatos de um velho convalescente, às portas da sepultura, falando e falando em vão, visto que o mundo não esta nem ai para ele, para sua história de vida e para seu drama e sua morte que está por vir. Senti isso, essa frieza em Glaciares; e não é a frieza da maldade, é pior é a frieza da indiferença para com a sorte alheia. Um bom título. Pior do que o que a patroa do moribundo diz lá fora, para a vizinha, é o fato de ela ESTAR lá fora, com a vizinha. É a realidade glacial da vida da gente. Lembrou Camus, em O Estrangeiro.

    abrç

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